Vimos o Pe. Caffarel pela primeira vez em 1957. Tínhamos então apenas três anos de equipe, o que naqueles tempos representava muito: basta lembrar que depois de três reuniões a equipe já pedia sua “filiação” ao Movimento. Fomos ao Colégio Santa Cruz para o encontro que o Pe. Caffarel, na sua primeira visita ao nosso país, teria durante dois dias com casais das então 13 equipes do Brasil1. Lembramo-nos até hoje das suas palavras no final da missa na capela, palavras que conclamavam aqueles poucos casais a levar adiante o ideal das Equipes de Nossa Senhora chamando, outros casais a viver seu matrimônio como vocação à santidade. Como todos os que o ouviram então, sentimo-nos diretamente tocados pelo ardor das palavras, pela urgência da missão de que acabava de investir a pequena sementeira de apóstolos ali reunida.
Cinco anos depois, estávamos sentados em torno de uma mesa no restaurante chinês próximo à casa dos Moncau, com eles, Esther e Luiz Marcello, Ignez e Orozimbo, Isa e Newton2, debatendo com o Pe. Caffarel o programa que havia sido montado para sua segunda visita e que, num abrir e fechar de olhos, ele desmontou inteiro, deixando-nos boquiabertos e, por que não dizê-lo, um tanto decepcionados em vista das muitas horas passadas para organizá-lo...
Assim era o Pe. Caffarel: o que decidia estava decidido, não havia o que discutir. Já experimentáramos, um ano antes, quando de nossa primeira viagem à França, o quanto nosso fundador era habitado por essa força interior que impunha respeito, ao mesmo tempo que inspirava admiração. Estávamos em visita ao então Centro Diretor (atual ERI) e pediram-nos para falar aos Responsáveis de Setor que se reuniriam em Paris naqueles dias. Somente a insistência do Pe. Caffarel fez com que aceitássemos, e ainda hoje Monique se lembra daquela sala onde pela primeira vez tivemos que tomar a palavra para falar das Equipes do Brasil.
Ainda o ano de 1962. Valinhos, primeira “Sessão de Quadros”3. O Pe. Caffarel falava, Gérard traduzia. De vez em quando, entusiasmado com o assunto, o Pe. Caffarel passava das 2 ou 3 frases combinadas e Gérard tinha o maior trabalho para se lembrar do que dissera. Ora, o Pe. Caffarel, que não entendia nada de português, interveio pelo menos em duas ocasiões, dizendo ao Gérard que havia esquecido de traduzir isso ou aquilo... Não entendia português, mas o seu senso do Movimento supria!
Naquela mesma Sessão, o Pe. Caffarel, ao ver equipistas entrando no salão no dia seguinte e serem recebidos com salvas de palmas, externou sua estranheza: “costume curioso esse de vocês, quanto mais atrasado alguém chega, mais é aplaudido!” Foi preciso explicar-lhe que vinham de longe e o ônibus em que viajavam havia quebrado.
Uma lembrança muito pessoal agora. O Pe. Caffarel almoçaria em nossa casa e Monique, sem saber que na França é a coisa mais banal, pensou honrá-lo servindo-lhe carneiro, mas não sabia cozinhá-lo e ficou duro que nem pedra. Imaginem a agonia da dona de casa recebendo aquela figura tão importante... Felizmente, não demorou para perceber que o Pe. Caffarel não dava a mínima atenção ao que havia no seu prato, só estava interessado na conversa. Que alívio!
Outras lembranças são só de Monique, que por três vezes teve a graça de fazer a Semana de Orações que o Pe. Caffarel organizava em Troussures, alguns quilômetros ao norte de Paris. Ele escolhera a dedo aquele lugar e ficava feliz quando eu me dizia maravilhada com a beleza dos campos que circundavam a Casa e a paz que deles emanava. Da última vez, quando comentei que me bastara entrar na casa para sentir-me imediatamente mergulhada no silêncio, sorriu e disse: “De fato, o silêncio aqui é quase palpável...”
Sempre que ia para lá, aguardava meio ansiosa a papeleta que deixavam em baixo da porta do meu quarto marcando a hora em que ele iria me receber. No exato minuto previsto eu tocava a campainha do seu apartamento, a porta se abria e lá estava ele, com aquele enérgico aperto de mão e aquele olhar direto e penetrante. Aliás, o que mais impressionava no Pe. Caffarel era exatamente o olhar, um olhar que parecia perscrutar até o fundo da alma da gente, mas também com algo de cumplicidade, um olhar que dizia conheço você melhor do que você se conhece... Perguntava por Gérard, Nancy, Marcellô, mas queria mesmo era saber do Brasil, ao qual devotava indisfarçável predileção... Em 1986, com o pretexto de que era “pour Nancy”, pedi para tirar uma foto dele e, para a minha surpresa, aquiesceu (é essa, frente à biblioteca, entre as fotos dos dois Papas).
Quem visse no Pe. Caffarel somente o lado erudito, a personalidade forte, não teria dele uma idéia completa. Disse alguém que um santo triste é um triste santo, e um dos traços marcantes do Pe. Caffarel era exatamente o humor. Divertia-se, por exemplo, quando, depois de explicar-nos que para entrar e permanecer em oração é necessária uma certa ascese, convidava-nos a “pular” o jantar... e ainda ao anunciar-nos que, no dia seguinte, no lugar da meia hora de “oraison”4 antes do café, faríamos uma maratona de 3 horas, entrecortadas por duas pausas (em que poderíamos sair da capela e comer um pedaço de chocolate, mas isso só descobríamos na hora...); “claro, ninguém é obrigado”, acrescentava ele nas duas ocasiões, rindo disfarçadamente de nossas caras assustadas.
Com a idade - em 1994 estava com 91 anos - não perdera nada de sua lucidez nem de sua vivacidade de espírito; apenas não fazia mais ele mesmo todas as palestras (essas mereceriam uma palavra especial, mas não caberia neste artigo). Quando fui falar com ele e disse que, da próxima vez que fôssemos à França, “daqui a dois anos”, esperava que Gérard fosse comigo visitá-lo, respondeu-me “daqui a dois anos não sei se ainda estarei aqui...”
De fato, em agosto de 1996, minha carta perguntando se poderia nos receber no final de setembro ficou sem resposta, mas pensávamos que essa chegaria após nossa partida. Em Londres, jantando com um casal nosso amigo desde a Peregrinação de 82, foi que soubemos, quando nos disseram: “Ouvimos dizer que o Pe. Caffarel teria falecido. Vocês estão sabendo de alguma coisa?” Chegávamos da Itália, somente íamos a Paris depois, e evidentemente não sabíamos de nada; levamos um susto e não podíamos acreditar nem entendíamos: “Como, teria? é um boato? estava doente?” (Na realidade, Cidinha e Igar quando haviam estado com ele em fevereiro já o haviam encontrado bastante enfraquecido, mas nós não sabíamos). Naquela noite mesmo tratamos de confirmar a notícia - era verdade: ele se fora como gostava de viver, no silêncio... deixando entre seus filhos das Equipes, além do sentimento de perda, uma certa incredulidade devida à discrição com que desejara cercar sua partida para o Pai.
Para nós, mesmo que Gérard não o tenha podido rever, ficou uma imensa ação de graças por termos conhecido um pouco o pequeno grande homem que Deus colocara em nosso caminho de casal havia mais de 40 anos.
Monique e Gerard
Equipe 1A - São Paulo
l. 6 e 7 de julho de 1957, e havia 10 equipes em São Paulo, 1 em Florianópolis, 1 em Campinas, 1 em Jaú.
2. Era, com Glória e Payão e o Pe. Corbeil, a equipe da então Região Brasil, futura Equipe de Coordenação Inter-Regional (ECIR), oficializada em novembro de 1962, no final dessa visita.
3. Depois “Sessão de Formação de Dirigentes” e finalmente apenas “Sessão de Formação”.
Oração interior, meditativa/contemplativa, traduzida entre nós por “meditação”.
fonte : Carta Mensal AGOSTO DE 2003
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