quinta-feira, 11 de julho de 2013

Multidões nas ruas: como interpretar?


Leonardo Boff

Esse grito (que vem das ruas) não pode deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra daqui para frente

Um espírito de insurreição de massas humanas varre o mundo todo, ocupando o espaço que sobrou: ruas e praças. Depois da África, Espanha, Inglaterra e USA, chega ao Brasil com a juventude e outros movimentos sociais. Ninguém se reporta às clássicas bandeiras do socialismo, das esquerdas, de algum partido ou da revolução. Agora são temas ligados à vida concreta do cidadão: democracia participativa, trabalho para todos, direitos humanos pessoais e sociais, transparência na coisa pública, rejeição a todo tipo de corrupção, um novo mundo possível e necessário. Ninguém se sente representado pelos poderes instituídos que geraram um mundo político palaciano, de costas para o povo ou manipulando os cidadãos.
Representa um desafio para qualquer analista interpretar tal fenômeno. Não basta a razão pura; tem que ser uma razão holística que incorpora outras formas de inteligência, dados racionais, emocionais e arquetípicos e emergências, próprias do processo histórico e mesmo da cosmogênese.
Antes de mais nada, é o primeiro grande evento de uma democracia em grau zero que se expressa pelas redes sociais. Cada cidadão pode sair do anonimato, organizar grupos e encontros, formular uma bandeira e sair à rua. De repente, formam-se redes de redes que movimentam milhares de pessoas para além dos limites do espaço e do tempo. Esse fenômeno pode representar um salto civilizatório que definirá um rumo novo à história, não só de um país, mas de toda a humanidade.


Por que tais movimentos massivos irromperam no Brasil agora? Muita são as razões. Atenho-me a uma – e voltarei a outras.


Meu sentimento do mundo me diz que, em primeiro lugar, se trata de um efeito de saturação: o povo se saturou com o tipo de política que está sendo praticada no Brasil, inclusive pelas cúpulas do PT (resguardo as políticas municipais do PT). O povo se beneficiou dos programas bolsa família, luz para todos, minha casa minha vida, crédito consignado; ingressou na sociedade de consumo. E agora o que? Bem dizia o poeta cubano Ricardo Retamar: “O ser humano possui duas fomes: uma de pão que é saciável; e outra de beleza que é insaciável”. Por beleza se entende educação, cultura, direitos pessoais e sociais como saúde com qualidade mínima e transporte menos desumano.
Essa segunda fome não foi atendida adequadamente pelo poder público seja do PT ou de outros partidos. Os que mataram sua fome querem ver atendidas outras fomes, a fome de cultura e de participação. Avulta a consciência das profundas desigualdades sociais, o grande estigma da sociedade brasileira. Uma democracia em sociedades profundamente desiguais como a nossa é meramente formal, praticada apenas no ato de votar. Ela se mostra como uma farsa coletiva. Essa farsa está sendo desmascarada. As massas querem estar presentes nas decisões dos grandes projetos que as afetam e que não são consultadas para nada.


A multidão nas ruas me faz lembrar a peça teatral de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes escrita em 1975: “Gota d’água”. Atingiu-se agora a gota d’água que fez transbordar o copo. As massas que gritam nas ruas denunciam que este Brasil não nos inclui no pacto social que sempre garante a parte do leão às elites. Querem um Brasil brasileiro, onde o povo conta e quer contribuir para uma refundação do país, sobre outras bases mais democrático-participativas, mais éticas e com formas menos malvadas de relação social.
Esse grito não pode deixar de ser escutado, interpretado e seguido. A política poderá ser outra daqui para frente.

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