terça-feira, 20 de maio de 2008

Fazer ascese por amor






Para que tu, leitor, não me abandones, pela rudeza do título acima, vamos começar com uma historieta. Buddha encontrou, certa feita, um penitente que praticava, há anos, espantosas austeridades corporais. Perguntou-lhe o que pretendia com tanto esforço. O monge disse que desejava desenvolver o poder de caminhar sobre as águas. Sorrindo, o mestre observou-lhe em tom compassivo: "Pouco vais lucrar com isto, com tamanho trabalho e desperdício de tempo. Dá uma pequena moeda ao barqueiro que te levará, gentilmente, para a outra margem do rio".

Se a historieta te cativou, leitor, vamos continuar. O tema, admito, é árido, mas tem sua importância. Há os que acreditam poder conquistar o céu ao preço de penosas penitências. Enganam-se redondamente. Nós, que admiramos a verdadeira Espiritualidade, acreditamos e sabemos que o céu - a outra margem do rio - é graça de Deus, que será dada para os que vivem em sua graça, e não para os que se vangloriam de caminhar sobre as águas. Deus é o barqueiro que nos levará para a outra margem da vida se não tivermos a presunção duma travessia solitária.

Ascese é uma palavra grega que significa simplesmente exercício. Religiosamente, comporta esforços, renúncias e penitências em vista da perfeição. Fazer ascese é exercitar-se para adquirir musculatura espiritual e poder percorrer com maior desenvoltura os caminhos do bem. Fazer ascese não tem nada a ver com a moderna "cultura do corpo", ou o fisiculturismo.

O verdadeiro asceta, por conseguinte, não é necessariamente magro, esquelético, descarnado. Muitas vezes o é, mas não se pode medir o grau de perfeição ou de espiritualidade pelo seu físico, mas antes pela intensidade de vida em prol dos grandes valores humanos e religiosos.

Em relação à ascese, os mestres espirituais sempre apontaram dois extremos a serem evitados: o do laxismo, que se caracteriza por um horror a qualquer tipo de renúncia ou sacrifício. O laxo é essencialmente um comodista, que só pensa no próprio prazer. É um egoísta sem grande caráter. Não busca forças para elevar-se, lutar, vencer e atravessar o rio. O segundo perigo é o rigorismo que se expressa como violência contra o próprio corpo. O rigorista não se dá descanso, acha que está pecando se sentir algum prazer material e quer atravessar o rio sozinho. Enquanto o primeiro é, via de regra, um glutão satisfeito, o segundo pode fazer-se um penitente carrancudo.

Não é preciso dizer que ambos estão longe do verdadeiro espírito da ascese cristã e dos verdadeiros caminhos da sabedoria humana. O laxo, por ficar aquém do que poderia ser e conseguir, e o rigorista, por perder o bom senso e ir além dele.

A Bíblia não faz a apologia da penitência, mas também não a desconsidera simplesmente. Jesus pregou: "Quem quiser ser meu discípulo, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga" (Mt 16,24; Mc 8,34; Lc 9,23). São Paulo parece temer as práticas ascéticas como se depreende da Carta aos Colossenses: "Ninguém, pois, vos critique por causa da comida ou bebida ou em matéria de festa ou de lua nova ou de sábados" (2,16). Denuncia o falso ascetismo de certas proibições que "são preceitos e doutrinas dos homens. Têm ares de sabedoria, mas são regras de afetada piedade, humildade e severidade com o corpo; em verdade não têm valor algum, a não ser para a satisfação da carne" (vv. 22-23).

Em contraposição, a tônica da verdadeira Espiritualidade se centra na consagração e no amor da pessoa a Deus, o que inclui um abandono e uma escolha: "Buscai as coisas do alto e não as da terra" (Cl 3,2) e "mortificai vossos membros terrenos" (v. 5). "Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça" (Mt 6,33). "Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho mas não vos preocupais com o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade" (Mt 23,23)!

A verdadeira ascese, por isto, mais do que um caminho em direção a si mesmo, comporta uma luta em direção aos outros. Faz-se ascese como forma de consagração e amor. A pessoa se purifica para viver mais desimpedidamente pelos outros. Renuncia a coisas válidas para ser mais irmã e companheira.

A Tradição cristã encontrou sua melhor formulação ascética na expressão: "Nudus nudum Christum sequi", ou seja, seguir nu, despojado, o Cristo nu e despojado. Em vista disso, o movimento ascético, penitencial, não é uma operação fechada sobre si mesma, a se stante, como diz o latim. A penitência, em si mesma, não tem religiosamente nenhum valor. Seria apenas uma dieta espiritual, mas que não conduziria a endereço algum. A ascese só tem valor quando feita "por amor de", "em vista a", "em benefício de". Quando recebe apenas o caráter de quem a faz, mas não o endereço de por quem é feita, a ascese é vazia e perigosa, inútil, suspeita e não recomendável.

Por sua natureza, a vida é uma força selvagem, com uma pujança formidável, com majestade apaixonante e beleza muitas vezes cruel. É como um diamante que, para não deixá-la em estado bruto, precisa ser burilado pela ascese. Os pais e educadores fazem isto com as crianças. Os adultos, consigo mesmo.

Con-centrados em nós mesmos, não passamos de indivíduos. Des-centrados de nós e concentrados nos outros, tornamo-nos pessoas. Sobre-centrados em Deus, transformamo-nos em criaturas divinas. Este processo pode ser doloroso e corresponde à tríade espiritual bíblica do jejum (con-centração em si), esmola (des-centração de nós e concentração no pobre) e oração (sobre-centração em Deus).

Mas há outras formas de ascese. Na ascese da fé, a pessoa se aceita com seus dolorosos e insuperáveis limites, fraquezas e misérias, dor e desenganos da vida, e com o desfecho da morte, aparentemente o absurdo e total fracasso da vida. Na ascese moral, a pessoa diz sim ao bem e não ao mal, abraçando e renunciando ao mesmo tempo. Na ascese escatológica, a pessoa alimenta uma constante disposição para a partida e uma iluminada vigilância diante da vida em Deus. Para quem é cristão, existe ainda a ascese da cruz, que consiste em abraçar o escândalo do calvário, identificando-se com o Cristo que não afastou o cálice da dor nem fugiu da idiotice da cruz, fazendo-se obediente à vontade do Pai.
Em conseqüência, parece claro que fazer ascese não consiste em mortificar simplesmente o corpo, mas em morti-ficar (fazer morrer) o velho Adão ou o animal que é egoísta, guloso, violento, preguiçoso e cruel em nós. Fazer ascese consiste em renunciar ao eu não intencionado por Deus e não em tentar ser, simplesmente, mais e melhor.

A verdadeira ascese visa a fazer-nos mais livres, levando-nos a viver mais plenamente. Não procura arrancar qualquer erva daninha em nosso jardim espiritual, mas cultivar os frutos e as flores que ele pode, com a graça de Deus, com a ajuda dos irmãos e com a coragem pessoal, produzir.

Brevemente, eis alguns princípios que orientam o verdadeiro caminho da libertação humana: 1) A ascese é um meio, somente um meio, embora importante e, ao mesmo tempo, doloroso. 2) A ascese tem valor relativo e só é aceitável como serviço de amor e quando leva o penitente a identificar-se com os outros e com o grande Outro. 3) O ser humano tem uma natureza ferida pelo pecado e necessita da graça para resgatá-la e da ascese para fortalecer o homem espiritual e interior. 4) A ascese religiosa objetiva a purificação do pecador e é a contrapartida humana devida ao pecado. 5) A ascese não cria méritos para a graça, mas serve de conditio sine qua non (condição necessitante) para ela. 6) A ascese não é um luxo reservado a poucos, mas é um ideário abraçado por quem quer ser grande. 7) A ascese não faz ninguém santo, mas os santos fazem ascese.

Se alguém, por fazer ascese, se fizer triste e azedo, é melhor que não a faça. É preferível e é mais engraçado um comilão feliz a um atleta espiritual emburrado. Um dos frutos da verdadeira ascese é a alegria. Tanto quanto o comilão feliz, o asceta também sabe cantar. E canta. E canta melhor.

Frei Neylor J. Tonin
Irmão menor e pecador

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