No dia 13 de março a Igreja comemora um ano da eleição do cardeal Jorge Mário Bergoglio como Papa. A presença de Francisco no Vaticano representa um grande alento, pois ele está mostrando aos cristãos e também aos não cristãos um jeito novo de ser Igreja, mais evangélica, mais simples, mais humana.
Para recordar a data, o Correio Riograndense publica uma “carta-
artigo” do sacerdote espanhol José Antonio Pagola*, escrita ainda no ano passado, mas que sintetiza o pensamento de milhões de cristãos.
Querido irmão Francisco: desde que foste escolhido para ser humilde “rocha”, sobre a qual Jesus quer continuar a construir sua Igreja hoje, eu segui suas palavras com cuidado. Acabei de voltar de Roma, onde eu vi que abraças crianças, abençoando os doentes e desvalidos e acenando para a multidão.
Dizem que você é acessível, despretensioso, humilde, simpático... e não sei quantas coisas mais. Acredito que há em você algo mais, muito mais. Pude ver a Praça de São Pedro e Via della Conciliazione cheia de pessoas entusiasmadas. Eu não creio que essa multidão se sinta atraída apenas pela tua simplicidade e simpatia. Em poucos meses, você se converteu em uma “boa nova” para a Igreja, e até para muito além da Igreja. Por quê?
Quase sem perceber, você está apresentando ao mundo a Boa Nova de Jesus. Você está criando na Igreja um clima novo, mais evangélico e mais humano. Estás nos trazendo o Espírito de Cristo. Pessoas afastadas da fé cristã me dizem que lhes ajudas a confiar mais na vida e na bondade do ser humano. Alguns, que vivem afastados do caminho para Deus, me confessam que despertou dentro deles uma pequena luz que convida a revisar suas atitudes diante do mistério último da existência.
Eu sei que na Igreja precisamos de reformas mais profundas para corrigir desvios alimentados durante muitos séculos, mas nos últimos anos tem crescido em mim uma convicção. Para que essas reformas possam ser levadas a termo, necessitamos previamente de uma conversão a um nível mais profundo e radical. Precisamos, simplesmente, voltar para Jesus, para enraizar nosso cristianismo com mais verdade e fidelidade na sua pessoa, na sua mensagem e no seu projeto do Reino de Deus. Então, quero expressar o que mais me atrai no teu serviço como Bispo de Roma.
Eu te agradeço por abraçar crianças e estreitá-las contra o teu peito.Com esses gestos estás nos ajudando a recuperar aquele gesto profético de Jesus, tão esquecido na Igreja, porém importante para entender o que Ele esperava de seus seguidores. De acordo com relato do Evangelho, Jesus chamou os doze, colocou uma criança no meio deles, a estreitou em seus braços e disse: “Quem acolhe uma destas crianças em meu nome, está acolhendo a mim”.
Tínhamos esquecido que no centro da Igreja, atraindo a atenção de todos, devem estar sempre os pequenos, os mais frágeis e vulneráveis. É importante que estejas entre nós como “rocha”, sobre a qual Jesus edifica sua Igreja, mas é tão importante ou mais que estejas no meio de nós abraçando aos pequenos e abençoando os doentes e desvalidos, para nos lembrar como acolher Jesus. Este gesto profético me parece crucial nestes tempos em que o mundo corre o risco de desumanizar-se, esquecendo-se dos últimos.
Eu te agradeço que nos convoques de forma tão reiterada a sair das igrejas para entrar na vida e na realidade onde as pessoas sofrem e se alegram, lutam e trabalham. Esse mundo onde Deus quer construir uma convivência mais humana, justa e solidária. Creio que a heresia mais grave e sutil que impregnou o Cristianismo é ter feito da Igreja o centro de tudo, removendo do horizonte o projeto do Reino de Deus.
João Paulo II nos recordava que a Igreja não é um fim em si, mas apenas “semente, sinal e instrumento do Reino de Deus”, porém suas palavras se perderam entre muitos outros discursos. Agora desperta em mim uma grande alegria quando nos chamas a sair da “autorreferencialidade” para caminhar até as “periferias existenciais”, onde nos encontramos com os pobres, as vítimas, os doentes, os infelizes...
Alegra-me destacar tuas palavras: “Nós temos que construir pontes, não muros para defender a fé; precisamos de uma Igreja de portas abertas, não de controladores da fé”. “A Igreja não cresce com o proselitismo, mas por atração, testemunho e pregação”. Parece-me ouvir a voz de Jesus que, a partir do Vaticano, nos exorta: “Ide anunciar que o Reino de Deus está próximo”, “ide e curai os doentes”; “o que de graça recebestes, de graça dai”.
Agradeço ainda teu constante convite a converter-nos ao Evangelho. Estou surpreso com tua liberdade em dar nome aos nossos pecados. Não o fazes com linguagem moralista, mas com força evangélica: os ciúmes, a inveja, a ambição de fazer carreira e o desejo por dinheiro; a desinformação, a difamação e a calúnia; a arrogância e a hipocrisia clerical; a “mundaneidade espiritual” e a “burguesia de espírito”; os “cristãos de salão”, os “crentes de museu”, os cristãos com “cara de funeral”; tua preocupação com o “sal sem sabor”, um “sal sem gosto de nada”, e nos chamas a ser discípulos que aprendem a viver no estilo de Jesus.
Mas não nos chamas apenas a uma conversão individual. Nos instigas à renovação eclesial, estrutural. Não estamos acostumados a ouvir essa linguagem. Surdos ao apelo renovador do Concílio Vaticano II, esquecemos que Jesus convidava seus seguidores a “por vinho novo em odres novos”. Por isso, me enche de esperança tua homilia da festa de Pentecostes, quando dizias: “A novidade sempre nos dá um pouco de medo, porque nos sentimos mais seguros quando temos tudo sob controle, se somos nós que construímos, programamos e planejamos nossa vida, de acordo com nossos esquemas, valores e gostos... Temos medo de que Deus nos guiará por novos caminhos, nos tire nossos horizontes, com frequência limitados, fechados, egoístas, para abrir-
nos os seus”.
Por isso pedes que nos perguntemos sinceramente: “Estamos abertos às surpresas de Deus ou nos fechamos com medo da novidade do Espírito Santo? Estamos determinados a percorrer os novos caminhos que a novidade de Deus nos apresenta ou nos entrincheiramos em estruturas caducas, que perderam a capacidade de resposta?”.
Eu quero concluir estas linhas expressando-te humildemente um desejo. Talvez não poderá fazer grandes reformas, mas impulsionar a renovação evangélica em toda a Igreja. Certamente, podes tomar as medidas oportunas para assegurar que os futuros bispos das dioceses do mundo inteiro tenham um perfil e um estilo pastoral capazes de promover essa conversão a Jesus que buscas impulsionar a partir de Roma.
Francisco, você é um presente de Deus. Obrigado!
* Padre José Antonio Pagola é sacerdote espanhol, licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, licenciado em Sagrada Escritura pelo Instituto Bíblico de Roma e diplomado em Ciências Bíblicas pela Escola Bíblica de Jerusalém. Professor e escritor, é conhecido no mundo inteiro pelas dezenas de livros escritos, entre os quais Jesus, aproximação histórica, Jesus diante da mulher e É bom crer. Atualmente, Pagola atua na paróquia São Vicente Mártir de Abando, em Bilbao.
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