“O lugar em que Jesus estava mais vezes, onde era possível encontrá-lo com facilidade”, indicou, na quinta-feira passada, o Bispo de Roma aos “seus” padres da Urbe, “eram as ruas”; poderia ser confundido com um indigente, “porque sempre estava nas ruas”.
Fonte: http://bit.ly/1hU4KAu |
A reportagem é de Gianni Valente e publicada no sítio Vatican Insider, 07-03-2014. A tradução é de André Langer.
Para Bergoglio, a imagem de Jesus na rua não é apenas fonte de sugestivas reflexões. Seguindo e imitando a Jesus que sai “às ruas”, muitas paróquias (padres e leigos) de Buenos Aires basearam sua atividade normal nessa imagem quando Bergoglio era o arcebispo da capital argentina. Ali nasceram experiências pastorais que o atual sucessor de Pedro leva no coração, e que foram analisadas recentemente inclusive nas pesquisas sobre a missão no âmbito urbano realizado na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Argentina e na universidade alemã de Osnabrück.
Uma destas iniciativas é a da “tenda missionária” da Praça
Constituição: a “tenda missionária da Igreja católica” que armam uma vez
a cada dois meses nas paróquias da região da Praça da Constituição de Buenos Aires. Bergoglio
ia quando podia, saudava um a um os sacerdotes, os jovens
“missionários”, e celebrava uma missa ao ar livre para grupos de jovens,
idosos, indigentes, mães com suas crianças e transeuntes que passavam
casualmente. “Peçamos a Jesus”, sugeria em suas homilias breves e
luminosas, “tudo de que precisamos... Como os pobres que pediam tudo a
Ele, quando passava pelas ruas e eles se aproximavam dele. Para Jesus é
muito importante estar com os demais, com todos nós, com todos os que
passam pela rua. É uma coisa que, acima de tudo, interessa a Ele”.
A Praça da estação Constituição e o bairro no qual se encontra são
espaços urbanos dos mais difíceis e potencialmente conflitivos da
metrópole argentina: venda de drogas, prostituição, pobreza,
marginalidade, delinquência... tudo isso em meio ao torvelinho de um
milhão de pessoas que diariamente transitam pela estação.
Periodicamente, os párocos e paroquianos da zona, armam a tenda amarela
ao lado do monumento ao inspirador da Constituição argentina, o maçom Juan Bautista Alberdi. Levam consigo uma estátua da Virgem de Luján,
a Virgem venerada no santuário nacional. E, durante um dia e meio
(inclusive à noite) mantêm vivo isso que descrevem como um “santuário
provisório”, uma “paróquia móvel”, um lugar “flexível” que quase
encontra harmonia com a itinerância fugaz da multidão.
Os padres e leigos não fazem sinais da cruz na Praça Constituição.
Nada a ver com poses clericais de “reconquista” demonstrativa nos
espaços públicos. Repetem gestos simples e concretos: distribuem
santinhos e bênçãos, recolhem as intenções de oração, celebram missas,
recitam o terço. Ao despertar a devoção aos santos mais populares, como São Caetano (o do “pão e do trabalho”), e Santo Expedito
(o santo das “causas justas e urgentes”). Os sacerdotes dispensam na
estação a graça eficaz dos sacramentos: confissões, eucaristia e
inclusive o batismo para aqueles que o pedem ao se aproximarem da tenda.
E depois ouvem. Tocam as chagas escondidas da humanidade ferida que,
normalmente, tem pressa. Assim, para muitos, esse clássico “não-lugar”
urbano (anônima conjuntura de barulho e circulação acelerada)
converte-se no lugar em que se pode encontrar Cristo, quando menos se
espera. Nas passagens casuais e distraídas pela estação florescem
vínculos pessoais que duram no tempo. Multiplicam-se pequenos e
escondidos milagres cotidianos.
Os missionários da Praça Constituição não fazem “propaganda” para a
Igreja. Os dias ao redor da “tenda missionária” são apenas ocasiões para
“facilitar” (e esta é a palavra chave, a que preferem) o encontro
pessoal com Cristo. Abençoando, confessando, falando. E ouvindo. Sua
proximidade compassiva com a multidão desencadeia inesperados
agradecimentos.
“Eles – conta Esther, missionária da “tenda” – vêm e
te agradecem: ‘Eu, que estava tão mal, te agradeço tudo o que fizeste
por mim’. E, na verdade, não fizemos nada... os olhamos nos olhos e nada
mais...”. Desta maneira, acontece que costumam sair felizes muitas
pessoas que por diferentes razões não teriam posto novamente os pés na
Igreja. Como testemunham as famílias de “Papeleiros”: “Graças a Deus”,
dizem, “que vocês saíram às ruas. Porque a rua, a praça é o nosso lar, e
vocês vieram para nos visitar... Porque nós, com nossos carros, não
podemos entrar na Igreja, e tampouco do jeito que estamos vestidos,
porque todas as pessoas... ou o sacerdote nos convida para nos
retirarmos, porque não nos deixam entrar... As pessoas fazem voltas para
não nos olhar”.
No tecido de vida que nasceu ao redor da tenda missionária nascem
também obras de misericórdia para ajudar as vítimas dos criminosos da
droga ou da prostituição, como as obras das irmãs do Santíssimo Redentor que libertam as prostitutas das suas condições de escravidão. As anedotas destes missionários, citados no ensaio de José Juan Cervantes e Virginia Zaquel Azcuy
sobre “a tenda”, estão cheias de caminhos que recomeçam, de famílias
salvas do naufrágio, de vidas descarriladas que retornam ao trilho. Para
os próprios “missionários”, a precariedade da tenda no meio da praça
ajuda a perceber a natureza própria da Igreja, sua dinâmica sacramental,
fora das redes de proteção e da oficialidade burocrática de certos
organismos paroquiais. Escreve o sacerdote Lorenzo de Vedia:
“Como acontece nos acampamentos, em torno da tenda, descobrimos que
podemos ser uma Igreja que se apóia no fundamental, e não em tantas
coisas superficiais. A vida do acampamento nos ajuda a ser dependente do
essencial para a vida. Na tenda missionária percebemos a sabedoria de
muitas pessoas simples de nosso povo que coloca o seu olhar no
essencial: a vida e a morte, a saúde e a doença, o teto e o abrigo, a
comida e a fome, a solidão, a dor e a festa”.
Quando o Papa Francisco repete que Jesus se encontra
“com mais facilidade” na rua, tem em mente as horas que ele mesmo
passou na tenda missionária da Praça da Constituição. E isto vale também
como leve sugestão para seus sacerdotes romanos e do resto do mundo.
“No Evangelho”, repetia o já falecido cardeal brasileiro Aloísio Lorscheider,
“os encontros mais bonitos de Deus com a humanidade acontecem na rua.
Séculos de história de cristianismo vivo não dizem o contrário”.
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